quinta-feira, 15 de março de 2012

amargo


acabo de jogar no lixo reciclável
a embalagem que embrulhava
o chocolate amargo que você
me deu aquele dia
enquanto ainda éramos
alguma unidade
de sentido 
talvez


acho que o carinha
que vai separar o lixo
nunca comeu um 
chocolate amargo
ainda mais esse
que é meio caro, importado 
com uma altíssima
concentração de cacau 


será que ele iria gostar? 
talvez não, pois chocolates
amargos são difíceis 
de se gostar assim logo de cara...
é igual água tônica de quinino:
tem que dar algumas insistidas
consumir algumas vezes
construir o significado do sabor
como um refinamento
do que é se alimentar
não apenas para matar a fome
ou para sobreviver
mas com um ato de prazer 
como uma entrega tântrica
transcendental 


o carinha que vai pegar a embalagem
não deve nunca imaginar
que o chocolate amargo
não é apenas um doce
e sim um partilhar de momentos
talvez 


ele deve pensar que nós
somos todos medíocres...
ou ele deve sentir inveja? 
mas também pode
estar tão cansado
de tantas coisas
que, quiçá, não vai 
pensar em nada 
a não ser em sair 
correndo de todo mundo
que sempre o maltratou
de todo preconceito no
rosto das outras pessoas
das pessoas que presenteiam
seus amores com perfumes
com livros, com vinhos
com camisas, vestidos, gravatas
sapatos, colares, chocolates
carros, iates, viagens 
poemas


ou, pode estar tão ciente
daquilo que faz, tão concentrado
que a embalagem pode ser
um modo de meditação
e através dela ele nos verá
apenas como pessoas
que gostam de coisas
das quais ele não teve
a oportunidade de aprender
a gostar


no dia em que você
veio aqui e me deu 
esse chocolate eu pensei:
acho que encontrei
alguma coisa que havia
cogitado ter perdido 
para sempre
talvez 


assim como a embalagem
vai se transformar em 
outra coisa, eu 
já me transformei 


continuo gostando
de chocolates amargos
com altíssima concentração
de cacau, mas
também tenho agora
uma altíssima concentração
de auto estima 


mas, e o carinha?